quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Quando o Mundo Parou


Quarta-feira da semana passada, Marcos acordou cedo para ir para o trabalho, como de costume.
Era uma manha muita fria de inverno em Freiburg. Temperatura por volta dos dez graus negativos.
Depois de tomar o seu banho matinal, ele comeu um iogurte de pêssego e tomou um café preto. Vestiu uma roupa quente e confortável e saiu de casa para pegar o trem que o levaria até o trabalho. No caminho até a estacao os flocos de neve lhe batiam no rosto e ele sorria. Ele gosta da neve.
Ele caminhava e pensava como ele havia evoluído no aprendizado da língua nesse um ano e meio morando na Alemanha, que já nao temia mais enfrentar alguma situacao onde ele nao pudesse se comunicar e que a cada dia o alemao ficava mais claro para ele.
Seu trem chegou pontualmente. Durante a viagem de pouco mais de 10 minutos ele foi sentado com a cabeca encostada na janela, olhando a neve cobrindo os morros e montanhas da paisagem e pensando como era bom estar num ambiente aquecido. Às vezes pestaneja, quase dormia, naquele vagao vazio. A calefacao dentro do trem, sua touca ainda na cabeca, seu cachecol enrolado no pescoco, as luvas esquentando suas maos, além do casaco quente que ele vestia, o deixava tao confortável que lhe dava sensacao de ainda estar deitado em sua cama, ao lado de sua noiva, no conforto do lar.
Uma pena a viagem ser tao curta, pensou ele.

Ao chegar no trabalho, Marcos ligou seu computador. O computador é lento, demora para carregar todos os programas, entao, para nao ficar sentado sem fazer nada, ele foi buscar um café dois andares abaixo do seu.
Marcos voltou e abriu o seu email. Mais alguns minutos de espera para carregar as mensagens.
Ainda de touca, luvas, cachecol e casaco, sentado em sua cadeira com a bunda na borda do assento, como se estivesse escorregando dela para baixo da mesa, já com o queixo e o nariz cobertos também pelo cachecol, e ainda "acordando", ele pensava no conforto que ele sentia naqueles trajes que o aquecia e protegia do severo frio vindo da Sibéria.

Há umas dez pessoas que trabalham junto com ele e o rádio está sempre ligado, tocando as mesmas músicas desde que ele comecou a trabalhar lá. A rádio que eles escutam nao é do agrado do Marcos.

O relógio marcava 8 horas e 29 minutos daquele dia gelado, quando "Ai se eu te pego" comecou a tocar. Marcos falou em voz baixa Nao, pelo amor de Deus. Nao é possível uma coisa dessas!
Duas colegas dele tentam dancar (mas que pique àquela hora da manha!). Só tentam, nao conseguem. O gerente vem lá do fundo da sala, caminhando, olhando aquela cena bizarra. Passa pelas duas, que nao dao a mínima para ele, e para na porta. Olha de novo para as duas e faz sinal negativo com a cabeca. Pelo menos alguém concordava com o Marcos.

Ele se volta para o computador e, no meio daquela "bagunca", comeca a ler um email, em alemao, de um cliente que tinha tido um embarque para o África do Sul no dia anterior. Ele vai lendo, tentando entender o que está escrito, pensa dali, puxa o dicionário daqui, pensa mais um pouco, corre os olhos pelo texto, quando, de repente, o mundo para. O mundo parou. O rádio ficou mudo. As colegas, dancando, ficaram congeladas como estátuas. O café no copo, virou pedra. Marcos levou as maos à cabeca. Desesperado, sem saber o que fazer, olhou para os lados. Todos congelados, inertes. Nao ouvia-se som algum. O dia tinha virado noite. Ele se levantou da cadeira, tirou a touca, o cachecol, as luvas e o casaco. Sentou de novo. Ele olhou para o computador mais uma vez. O Marcos estava pálido, completamente atordoado. E ele nao conseguia desviar o seu olhar da tela do computador. A tela comecou a se mover e dela, as letras da mensagem que ele lia, comecaram a saltar para cima da mesa dele e correrem em sua direcao. Isso mesmo! As letras ganharam vida. E corriam! Algumas letras estavam vestidas como guerreiros, de armadura, lancas e elmos e outras com um uniforme como se fosse militar e carregando armas de grosso calibre. Gritavam alguma coisa no dialeto local impossível de saber. Elas comecaram a subir pelas suas maos (ele estava com os abracos apoiados na mesa) e em questao de segundos o dominaram. A letra "O" nao tinha pernas. Quando os "Os" pulavam da tela, já caiam na mesa e avancavam sobre ele rolando, mais rápido. Os "Ss" eram como anacondas enfurecidas rastejando em sua direcao e os "Is" iam pulando ao encontro dele, fazendo a mesa inteira tremer. A primeira letra a chegar no topo da cabeca do Marcos foi a Eszett ou Scharfes S, representada pelo fonema ß, uma letra do alfabeto gótico usado na língua alema. Ela fincou uma bandeira alema na cabeca dele e soltou um urro. Marcos estava a mercê do AGG (Alfabeto Guerreiro Germânico) e do grupo armado, violentíssimo, e muito temido pelos estrangeiros, GGLA (Gramática Guerrilheira da Língua Alema). Sem chances, só lhe restava rezar, ainda que ele nao acreditasse que nada pudesse lhe ajudar. Ele estava tomado pelo pavor.

Mas o Marcos é um cara legal. Ele nao merecia passar por aquilo.
Subitamente ele escuta uma voz.  
Schatzi, brauchst du Hilfe? Perguntou sua noiva e colega de trabalho, tocando a mao em seu ombro e percebendo que havia algo de errado com ele.
Jaaaaaaaaaa!!!! Bitte, bitte, bitte!!!!

Ele apontou para a tela mostrando o email que ele estava lendo.

Num "passe de mágica", todas aquelas letras comecaram a voltar para dentro da tela do computador, correndo de medo daquela gigante (se comparado com o tamanho das letras) que comecava a esmagá-las, uma por uma, sem dó nem piedade, sem fazer esforco algum e com a maior naturalidade.

Entretanto, o Marcos, ainda nao estava livre. Ele precisava de uma explicacao.
Mas o que é isso? Perguntou ele, em português mesmo, como se o remetente da mensagem pudesse ouví-lo.
E continuou.  
Tu tá de sacanagem comigo, hein?!?!? Tu nao sabe que eu falo português? Que eu venho do Brasil??? O que tu tá pensando??? Eu estou aqui para aprender alemao, meu, mas isso nao te dá o direito de me escrever isso, pô!!! Tô recém no B1!!!
Sicherheitgrenzenderwahrscheinlichkeithöchtstwahrscheinlichen é tu, seu ordinário!

A essa altura já tinha mais uns dois colegas em pé, atrás da cadeira dele, rindo.

O susto foi grande, mas ele sobreviveu.

Uma palavra grudada na outra, cinco no total.
Essa palavra poderia ser substituída por simplemeste "sehr warscheinlich" ou ainda "höchtswarscheinlich" o que significa, "muito provável", em português.

É isso! O Marcos ainda tem muito o que aprender dessa língua.

Tschüss!

Nenhum comentário:

Postar um comentário